Enfim, a narrativa do artista baseia-se, primeiro, num manan-cial de vivências alheias, entretanto muito próximas de si, e que por certo lhe influenciaram a formação infantil, adolescente e, principalmente, a sua plenitude adulta de cidadão e artista. Por-que não há como desvincular as etapas de sua vida vivida em grupo, especialmente no grupo familiar, que é o mais poderoso elo do ser humano consigo e com o outro que lhe está contíguo recebendo e ofertando influências. Eis a essência do texto de Daviran Magalhães, que põe no mundo uma aventura rica em acontecimentos, a sua jornada cheia de vaivens interessantes e de emoções eletrizantes. Nesta história de vida há o forte ingrediente emocional extra-ído dum terreno de dificuldades extremas, e de pobreza máxima, e de luta ferrenha para superá-las, tendo como centro a mulher nordestina Raimunda Magalhães, de carinhoso apodo Mundinha, mãe do autor, apenas mais uma dentre tantas "Mudinhas" que migraram do Norte e do Nordeste para os grandes centros tentando materializar o sonho comum de vida melhor. Mas, se lá no Nordeste a saga era tortuosa, a migração se tornaria um poderoso carma a ser vencido. Nem por isso a destemida nordes-tina deixaria de se entregar aos seus devaneios, pois nascera sonhadora ainda em Viçosa, seu rincão cearense, e buscava em suas fantasias adolescentes um príncipe encantado para amar e com ele procriar a própria família. Mundinha vivia de sonho e luta, com ambos se misturando num caldo de máximo sofrimento e mínimas alegrias, estas mui-tas vezes restritas ao pedaço de pão conquistado e dividido entre os filhos, enquanto o seu príncipe encantado, Dácio, a mais e mais a desencantava na vida real, impondo à aventura de viver matizes e texturas de ficção trágica. Não sei se foi Sartre quem disse que a vida de qualquer pessoa, quando escrita, transforma-se numa grande aventura. Sendo ou não o filósofo, vale o dito, pois assim é a vida humana: um entrelaçamento íntimo de aven-turas vividas e observadas num só ambiente ou em ambientes diversos. Sim, falamos de vivência, que é diferente do que se infere da leitura de textos ou da observação de imagens, que só nos permitem concluir por idéias, que, enfim, são vagas. Mas o livro de Daviran Magalhães é antes um tratado de vi-vência que permitirá ao leitor sentir-se personagem da história dele, em especial aquele oriundo das camadas sociais mais des-providas de recursos ou a elas pertencentes no passado. Porque é inolvidável e épica a vivência de Daviran Magalhães junto com seus irmãos e sua mãe Mundinha, demais de alguns poucos na-morados que eventualmente ocuparam o trono do seu (dela) frustrado príncipe encantado. Na verdade, é um retrato-falado traçado em prosa por um artista plástico inteiro no seu dom de retratar no lápis, ou no pincel, ou na espátula, ou por meio de outras ferramentas, a sua visão de mundo. E o artista nada mais é que visionário. É quem vê o mundo com o coração e o espírito porque nasce com o inexplicável talento de materializar ilusões para enriquecer a vida real despida delas. Confesso que eu mesmo me senti parte da história de Daviran Magalhães. Cresci órfão de pai e fui criado por mãe costureira, que, inversamente à mãe Mundinha, não falava enquanto cosia, e muito menos contava histórias. Comunicava-se com seus cinco filhos muito mais pelo silêncio, que, por sinal, era deveras elo-quente. Enfim, cada mãe com a sua sina, mas ambas caracteri-zadas pela força interior, pela vontade férrea de vencer obstácu-los e dar aos filhos um futuro melhor, um futuro de sucesso. E Mundinha logrou êxito: fez de Daviran Magalhães, o seu filho "Davi", um guerreiro capaz de vencer a "Golias".