No romance A máquina de fazer espanhóis, o passado do narrador octagenário aparece, inicialmente, de forma metafórica. O personagem vê pássaros negros adentrarem o seu quarto, à noite, para devorar o seu corpo até que não reste mais nada, imagem que lembra um dos suspenses mais assustadores de todos os tempos: The birds, de Alfred Hitchcok (1963), no qual os habitantes de uma pacata cidade da Califórnia são misteriosamente atacados por uma legião de pássaros que, ao que tudo indica, também funciona como uma metáfora na obra. É impossível não lembrar, ainda, do poema "The Raven", de Edgar Alan Poe (1845), em que os últimos versos de cada estrofe terminam com as repetições fúnebres da ave sinistra: "nevermore", rimando com o nome da amada morta do eu-lírico: Lenore, tal como uma badalada maldita na noite abandonada...
Nessa narrativa de Valter Hugo Mãe, os pássaros que causam terror no protagonista só podem ser fruto da sua imaginação, uma vez que as portadas do quarto permancem fechadas durante a noite. As aves corporificam, assim, o seu remorso por ter sido mais um, dentre tantos cidadãos portugueses, a se conformar com um sistema político ditadorial que perdurou por mais de quatro décadas em seu país. Ainda assim, (nesse e nos demais romances analisados) o personagem rompe com a dialética trágica que o cerca, optando por manter a memória em seus últimos momentos de vida. Memória que vivifica a dor, mas que também guarda os momentos de amor com a mulher amada.
É dessa perspectiva que os personagens de Mãe, por via das palavras, assemelham-se à escultura Antiga de Laocoonte, que Schiller tão bem analisou como a representação vívida da resistência ao sofrimento, condição essencial para que, segundo ele, a dor extrema possa ser transfigurada na sensação estética do sublime.