Identificação é algo complexo. Pode ser acolhedor ou um baita dedo na ferida. No processo de seleção destes textos, passei por um turbilhão de emoções. Trinta dias lendo mais de mil relatos de solidão, de medo — no melhor dos casos, contos que falavam sobre uma quebra do cotidiano. Eu estava em casa e achava que logo poderíamos sair, mas o livro vai ser publicado e ainda estou aqui.
Estes contos fizeram do meu quarto uma torre de vigia. Olho pela janela e penso: "Cara, que bom que não dá pra ver a casa do meu ex daqui!", rio um pouco e completo: "Maldita Cinthia!". Comprei palavras cruzadas e, sentada no sofá, fiquei me perguntando se o cruziverbalista daquela edição também se sente de fora por não conhecer as músicas de Billy Eilish (será que esse pai compra pôsteres de artistas para a filha e aproveita para usurpar esses nomes para as suas revistas?). Também brinquei por vários dias com minha geladeira: abria a porta e esperava para ver se ela respondia — talvez meu erro tenha sido não deixar as alfaces estragarem.
Mas a literatura também nos puxa para a realidade. Entregadores de aplicativo, domésticas, comerciantes ambulantes: são profissionais que vejo todos os dias e o mínimo de consciência de classe me levou ao equilíbrio de respeitar sem romantizar os esforços excessivos que só servem para fazer girar a máquina de moer gente do capitalismo.
Estes retratos me levaram para a beira dos rios, com quilombolas e indígenas, e me levaram para lugares sagrados, porque santo não quer saber de pandemia ou de presidente fascista. Santo quer saber de cumprir promessa.
Retratos da vida em quarentena carrega em seus dezenove relatos um panorama deste momento em múltiplas vozes. Seria egoísta desejar que algum dia estes contos sejam lidos apenas como ficção. O que desejo, então, é que os futuros leitores deste livro tenham a sensibilidade de buscar nestes relatos um motivo para não repetir o passado. Também faço meu o desejo de que o futuro não demore.
— Bárbara Krauss
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Retratos da vida em quarentena é resultado de uma chamada pública de textos lançada pelas editoras Elefante e Dublinense em março de 2020, quando a covid-19 começava a se espalhar pelo país, levando boa parte da população ao isolamento social — e outra boa parte, ao risco da labuta diária fora de casa em plena pandemia. Nossa proposta era "selecionar textos narrativos em prosa, em primeira ou terceira pessoa, escritos em língua portuguesa por brasileiros e brasileiras (ou estrangeiros e estrangeiras residentes no Brasil), sobre a experiência de atravessar a pandemia de coronavírus". Recebemos mais de mil textos, entre os quais escolhemos os dezenove que acreditamos refletir da melhor maneira, e com grande pluralidade de vozes, esse momento inédito em nossa vida.
MARLUCE
Humberto Conzo Junior
MANUAL DO OBITUARISTA
Laura Castanho
ABRE E FECHA
Rosana Vinguenbah Ferreira
A PROMESSA DE DONA TATÁ
Nelma Rolande
DELIVERY
João Paulo Vasconcelos
TECNICAMENTE
Vitor Fernandes
POR QUE BRENDA ESCREVE
Elaine Narcizo
O VELHO E O RIO
André do Amaral
SOLO
Carol Miranda
MALDITA CINTHIA
Matheus de Moura
ALFACES ESTRAGADAS
Iuli Gerbase
OLHAR NA TUA CARA E DESCOBRIR QUE HORAS PODEMOS CONVERSAR
Caio Riscado e Maria Isabel Iorio
COVID-1997
Jaime S. Filho
QUARENTENA, 10 LETRAS
Analu Bussular
EXERCÍCIOS BRONCODILATADORES DE RÁPIDA AÇÃO
Flor Reis
O PROBLEMA
Laiz Colosovski
ELE
Ana Clara de Britto Guimarães
QUARENTA QUARENTENAS
Mateus Dias Pedrini
PORTAS E JANELAS ESCANCARADAS
Jean Ferreira