"Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra." Nesta frase antológica de Clarice existe uma chave para o entendimento do poderoso efeito que seus textos produzem no leitor. Clarice não retrata coisas, fatos ou estados d'alma. O que pode ser dito de modo claro e inequívoco não é bem o que lhe interessa. Mesmo quando parece descrever objetivamente coisas ou acontecimentos, há algo em suas observações que encanta ou perturba o leitor, sem que ele saiba sempre exatamente por quê. O que move sua escritura é a ambição de tornar presente a entrelinha, o sentimento sem nome, os ecos, as ressonâncias, as sensações informuladas, "a realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu".
Sua magia é essa. Ela usa palavras como Cézanne manipula suas tintas, como Debussy organiza suas notas e harmonias: para trazer à tona o que de outro modo permaneceria oculto, velado silencioso, na experiência do público. Clarice possui essa magistral capacidade de roçar com palavras aquilo que está um pouco além do que nossa percepção alcança imediatamente. Usando palavras comuns, ela descobre novos mundos. Mas ao utilizar sua matéria-prima, a linguagem, sua pretensão nunca é dar nome aos bois, explicitar sentidos, decifrar enigmas. Ao contrário. Para Clarice, "o esplendor de se ter uma linguagem" deriva justamente do fato de que o milagre da significação jamais se realiza por completo. Escrever, assim como viver, é deixar-se afetar, sofrer o impacto do que não sabemos designar, experimentar o mistério, inventar modos de nomeá-lo, e renunciar a tudo entender.
Mergulhar na leitura das crônicas, relatos e fragmentos contidos em Para não esquecer é explorar, junto com Clarice, os recantos clandestinos de nosso cotidiano.
— BENILTON BEZERRA JR., Prof. do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro