Poeta em tempo integral, ou pelo menos de sensibilidade sempre aberta a vida, Cora Coralina escreveu também em boa prosa, como se comprova em "O Tesouro da Casa Velha". Livro da velhice, redigido lá pelos 90 e tantos anos, foi um dos últimos trabalhos da autora, que nele se empenhou com lentidão, gosto e capricho, apesar da idade, preocupada não apenas com as peças em si, mas também com a unidade do volume. Na época, costumava brincar com seu médico, pedindo que a tratasse bem, a fim de ter tempo de terminar o livro. Não chegou a concluí-lo, a edição foi póstuma. Esse tesouro reune dezoito contos, vários deles baseados em reminiscências pessoais, provavelmente vividas pela autora ("As Cocadas", "Ideal de Moça", "Das Coisas Bem Guardadas e suas Consequências", "Candoca") e por pessoas de seu relacionamento, em histórias familiares ("O Tesouro da Casa Velha") ou fatos fisgados na tradição viva goiana ("O Corpo de Delito", "Medo", "As Capas do Diabo"). Como contista, Cora Coralina não difere muito da poeta, a não ser a mudança de instrumento, a poesia pela prosa. São trabalhos simples, com poder de comunicação com o leitor, sem complicações de enredo, narrados de forma direta, com as qualidades do contador oral, talvez por isso mais perto do conto popular que do literário, captando por vezes com muita graça certos aspectos maliciosos da psicologia do homem do interior. A propósito, leia-se o delicioso "Ze Sidrach e Dico Foggia". O mesmo estilo simples dos poemas, apesar do emprego de alguns arcaísmos (prebenda, gatafunho, baldrame etc.), que não chegam a ser pernósticos (faziam parte da linguagem usual da infância de Cora Coralina), dando ao texto um certo sabor exótico de passado, de material encontrado num cofre, de tesouro de casa velha, desafiando a curiosidade do leitor.