Durante milênios, a humanidade conheceu apenas religiões de culto, politeístas, de âmbito local ou regional, enraizadas na história de cada povo, confinadas nos limites da sua língua e da sua cultura. A elas pertenciam os antigos deuses egípcios, babilônicos e greco-romanos, entre outros. As semelhanças entre tais religiões permitiam que se estabelecessem correlações entre elas, com fronteiras fluidas e até intercâmbio de deuses.
Foi tremenda a alteração trazida pelas religiões reveladas, monoteístas, consolidadas em textos canônicos e dotadas de vocação universal. Elas não resultaram de processos evolutivos, mas de atos revolucionários, apresentando-se como portadoras de verdades que não se veem mais como complementares a outras verdades. Fora da sua ortodoxia estão a heresia, o paganismo, a superstição e a idolatria.
As religiões de culto lidam com o sagrado manifestamente presente no mundo, encarnado em objetos e lugares ou representado em imagens. Para as religiões do livro, porém, as coisas do mundo são armadilhas que desviam a atenção. O sagrado é inacessível aos sentidos.
Nas religiões arcaicas, o texto, quando existia, estava inserido no ritual e subordinado a ele. No monoteísmo, o ritual passa a ser um acompanhante da leitura e da interpretação de escrituras canônicas. Elimina-se a exuberante teatralidade dos cultos.
Em um caso, rito, imagens e imanência. Em outro, escrita, abstração e transcendência. Nessa transição, o sacerdote cede lugar ao intérprete, ao erudito, ao pregador.
Tudo isso é o que Jan Assmann chama de “distinção mosaica”, em referência ao fundador do judaísmo. Não se trata de um evento histórico específico, mas de uma ideia reguladora, cujo efeito transformador – e civilizatório – se estende por séculos. Mas, ao separarem rigidamente o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, o bem e o mal, as verdades reveladas induzem as religiões à intolerância e ao antagonismo. É o preço do monoteísmo.
César Benjamin
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