É claro, porém, que, naquela tarde escaldada pelo sol revoltado no Nordeste, Pietra não fazia a menor ideia de nada disso, quando sua mãe chegou da casa da vizinha, aonde fora para depilar a sua virilha gorda e mal cheirosa com cera quente, Pietra estava brincando, sem ter a menor noção das tensões que moldavam seu mundo tão pequeno. Como toda menina de dez anos, só se preocupava em brincar, passava horas na área livre que circundava sua casa na periferia da cidade, andando de um lado para o outro, desbravando a vida secreta das minhocas que viviam sob as pedras do chão de terra e cantando em dueto com o seu melhor amigo, um pé de palmeira que reinava soberano no centro daquele jardim sem flores. Ao ver que sua mãe havia entrado, Pietra correu ao encontro daquela mulher de trinta e um anos, que, à época (em virtude das noites em claro que passava brigando com seu marido, que era ciumento e imprestável para se manter em qualquer emprego, e das jornadas extenuantes de trabalho), aparentava ser bem mais velha e abraçou-lhe pela cintura. A mãe a afastou, impaciente, com a mão desocupada e adentrou a humilde casa em direção à cozinha. Procurou uma panelinha manchada de preto, de cabo partido e toda amassada que ficava guardada embaixo da pia do quintal, porque era o que de mais asqueroso havia naquela pequena casa. Abriu a sacola e tirou dela uma outra sacola, dentro desta havia um plástico laminado com a cera utilizada na depilação. Pietra já estava ao lado de sua mãe, gostava de assistir àquele ritual de glorificação de sua indignidade...