No mundo mecanizado da era industrial, no qual a matéria inerte respondia a uma série de leis rigorosas, exatas e universais, o vivo constituía uma aberração tão inquietante como inexplicável. Já o corpo morto, desprovido da gloriosa chama vital, tornava-se cognoscível: suas engrenagens eram perfeitamente explicáveis. Assim, a tecnociência moderna procuraria elucidar o escândalo da vida como uma exceção à regra. Ou, então, tentaria inseri-lo na explicação mecânica universal, negando boa parte de suas potências ao reduzi-las ao mero funcionamento dos aparelhos que compõem cada organismo. Desse modo, o saber científico redefiniu o corpo humano: arrancando-o dos homens vivos para fazer do cadáver seu modelo e seu objeto privilegiado.""
Paula Sibilia
Construir um homem pós-orgânico ""projeto faústico"" parece ser a vontade da nossa época. Fazer confluir técnica e vida com o álibi de fortificar o corpo e minguar seus desassossegos, mas sem lhe poupar dívidas nem acoplamentos aos fluxos acelerados e contínuos que são ativados pelos ""biopoderes"" atuais. Estamos no umbral de uma metamorfose que Paula Sibilia examina e interroga com interesse, serenidade e espírito alerta: a passagem de um mundo em que a máquina era princípio de ordem, potência e regularidade, para outro em que os seres humanos são compelidos a se sintonizar com o mecanismo de curvas e contracurvas do capitalismo global. Obsolescência ou atualização: tal é a disjuntiva, ou a cruz, imposta pelas forças titânicas que estão dando forma à vida. Sobrelevamos, então, uma transfiguração, cujas consequências se anunciam imensas e ainda desconhecidas, tão certas como iniludíveis. As ideias recebidas acerca da ética, da ciência, da tecnologia e da política se veem forçadas a ruir ou a se amoldar. O corpo, essa incômoda persistência abarrotada de mal-estares e sonhos de lonjura, agora mergulhado num campo de manobras que também o é de excitações e programação torna-se objeto experimental, e ninguém sabe ainda para quê. Sem rejeições apressadas nem entusiasmos incautos, mas com ânimo de elucidar e desentranhar, Paula Sibilia mostra a vida moldada como informação, uma nova metafísica que encobre os alicerces históricos e políticos da atual reorientação das coisas, e isso em nome de um anseio muito humano: a fuga da dor rumo a um corpo poderoso, elétrico, quase imunizado, um elixir para a autoestima. Trata-se de uma adequação propagada como automodelação, mas cujas inflexões ficam submetidas aos dúcteis comutadores da sociedade do controle. A autora deste livro empreendeu uma dupla tarefa, árdua e importante: fazer uma autopsia da época emergente e desnudar os mecanismos de saber e de poder que a tornam possível. Visto que o tempo concedido a um corpo é irreversível, ela nos lembra que perguntar é uma arma política, que há fendas em toda armadura e que a vida tem menos de teorema já resolvido que de possibilidade ainda não tentada.
Christian Ferrer