Numa época em que as distopias parecem tão próximas, vale a leitura de Kallocaína – romance do século XXI, ficção futurista escrita em 1940 sobre uma sociedade baseada no controle estrito dos cidadãos por um Estado todo-poderoso. Nesse contexto, a invenção de um soro da verdade – a kallocaína do título – equivale à arma que faltava para dominar o último território rebelde do ser humano, seu pensamento. A autora Karin Boye (1900-1941), cultuada na sua Suécia natal como extraordinária poeta modernista, ganhou atenção internacional com este romance. Sua projeção de um Estado radicalmente totalitário o coloca ao lado de outras três obras perturbadoras escritas na primeira metade do século XX: Nós, de Ievguêni Zamiátin (1924), Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1948), de George Orwell – todas criadas sob a inspiração do seu tempo, quando o espectro da tirania rondava a Europa.
Kallocaína se passa na subterrânea e sufocante Cidade Química nº 4, pertencente a um autodenominado Estado Mundial. Apesar desse nome, os personagens sabem vagamente que há outras regiões habitadas no mundo e que ocorreu uma Grande Guerra num passado indeterminado. A época, como informa o subtítulo do romance, é algum momento do século XXI. Leo Kall, o cientista que inventou a kallocaína, dá início à narrativa quando se encontra recolhido a uma prisão do estado, ao mesmo tempo que conduz testes da substância em cobaias humanas. Comprovada sua eficácia, a kallocaína passa a ser um instrumento da polícia.
Embora seja apenas mais um "camarada soldado", Kall se orgulha de fazer parte de uma história que considera bem-sucedida: "Do individualismo ao coletivismo, do isolamento à comunidade, assim havia sido a jornada desse imenso e sagrado organismo, no qual o indivíduo nada mais é do que uma célula sem maiores significados que servir o conjunto do organismo".
O apreço pela ordem racional, no entanto, esbarra em suas emoções demasiado humanas, como a inveja, o ciúme e o apego aos filhos, que no Estado Mundial são separados da família aos 7 anos e enviados a campos de crianças. O sucesso de sua invenção não impede que Leo Kall comece a se sentir insatisfeito e especular sobre a possibilidade de ser feliz. O individualismo, apesar de toda repressão, não o abandona: "A complexidade da minha existência tinha se tornado gigantesca enquanto o sentido do conjunto diminuíra imensamente".
Para aplacar o ciúme e afastar a desconfiança de que sua mulher mantém um relacionamento secreto com seu chefe imediato nos experimentos com cobaias, promove o uso do medicamento para arrancar confissões e delações. Contudo, pequenos deslizes verbais do próprio Kall levam o Ministério da Propaganda, responsável por zelar pela ética do Estado, a convocá-lo a depor sob suspeita de ser um "relutante".