O trânsito nas grandes cidades brasileiras é unanimemente considerado caótico – com uma alta carga de agressividade e violação das leis que causam um grande número de acidentes e mortes. À parte a responsabilidade do Estado pela manutenção das estradas e ruas, tanta tragédia sobre rodas pode ser atribuída principalmente à cultura do brasileiro em dispor do espaço público como seu e de mais ninguém. "Fechar", "furar" e "dar um balão" são as versões do popular "jeitinho brasileiro" usadas por motoristas no dia a dia. O estudo da dinâmica do sistema de trânsito e como atuam e o que pensam seus atores (pedestres, motoristas, caminhoneiros, motoqueiros, ciclistas) deram origem ao ensaio inédito Fé em Deus e pé na tabua – ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil, do antropólogo Roberto DaMatta.
O livro é resultado das pesquisas encomendadas pelo governo do estado do Espírito Santo. O levantamento, realizado como parte do projeto Igualdade no Trânsito, foi feito entre maio de 2007 e janeiro de 2008, e tinha, entre seus instrumentos de coleta de informação, entrevistas qualitativas com motoristas, pedestres e outros usuários do espaço público.
Roberto DaMatta traça um panorama preocupante do comportamento do brasileiro – não só no volante, mas para além dele. Um comportamento com raízes profundas na constituição cultural do brasileiro. É a cultura da casa – onde reside o personalismo, a leniência e um sentido de autoridade – levada para a rua – onde as regras devem funcionar da mesma forma para todo mundo, para manutenção da ordem social. No Brasil, no entanto, os "donos da rua" fazem suas vítimas – nesta dinâmica, os pedestres –, cidadãos sem direito de exercer sua cidadania com a igualdade que um espaço que é de todos pede.
Com a lucidez de grande analista, Roberto DaMatta produz uma sociologia do trânsito e mostra um cenário que, embora seja duro de contemplar, desafia Estado e sociedade a deixarem para trás antigas práticas na busca de soluções.