Como toda residência de interior habitada muito tempo pela mesma família, a casa velha da ponte vivia cheia de histórias. Construída "em pedra, madeirame e barro", com as suas "folhas de portas pesadas de arvores fortes descomunais serradas a mão", a sua senzala desativada e seus imensos portais, a própria casa já era uma parte viva da história da cidade de Goiás Velho.As suas paredes presenciaram histórias de amor e suicídios de escravos, enquanto lagartixas buscavam as brechas para se aquecer. Um dos antigos proprietários, recebedor dos quintos reais, tinha se apossado do dinheiro do Estado. Para fugir da prisão, teria ocultado no porão moedas e barras de ouro, dando origem assim à lenda do tesouro enterrado. Mais tarde, em época de esplendor, a família so "almoçava sua gorda feijoada goiana em pratos e talheres de ouro". Tradições como essas embalaram a infância de Cora Coralina, criada na velha casa, já então decadente, "cerradas portas e janelas, resguardando de olhar estranho o desmazelo e a pobreza que se instalavam". Essas histórias domésticas e outras vividas na cidade, que impressionavam a menina, são o material vivo e humano do livro, registro de velhas tradições e, ao mesmo tempo, retrato fiel e pitoresco de uma comunidade do Brasil Central no final do século XIX e início do século XX, com as suas prostitutas segregadas, vivendo em becos, capazes de valentias, como a narrada no delicioso Minga, zoio de prata, os famosos raptos de donzelas ("Cortar em Riba do Rasto"), tão frequentes no Brasil antigo, as solteironas ("Quadrinhos da Vida").Nem faltam as estórias de assombração e assombramento ("Procissão das Almas", "O Caso de Mana"), sempre tão vivas no imaginário popular, narradas com aquela insuperável simplicidade e leveza de Cora Coralina, encanto de seus versos, encanto de sua prosa.