"Queria beijá-la por inteiro, tocar os seus pedaços íntimos, brincar com os sinais escondidos em seu pescoço e sentir seus dedos tortos, pequenos e grossos, mas não disse nada disso. Penso que não deixaria de permanecer mudo, havia dor na minha voz. O que eu estava fazendo, senão perceber que suas feridas também eram profundas, cheias de hiatos oblíquos, e que me portava como quem de fato não fosse capaz de entendê-las? Não se tratava de um rascunho das nossas dores, mas era no olhar que encontrávamos força e inspiração para perseverar num ciclo simbiótico que ela ou eu criou. O fato é que eu estava escalavrado pela mazela adormecida naqueles olhos desidratados, mas tudo dela era da vida, seu compromisso era com o imprevisível, e eu sou fugaz feito um sorriso de canto de boca, vivo para enganar a vida. Deixe-me com você e jamais abandone seus olhos de mim, pensei em me aproximar e dizer, mas estava atolado, tudo fazia parte de um plano irônico: sinceramente, ela, apesar da minha súplica, jamais seria minha. Naquele lugar florescia uma estranheza fecunda e talvez ela quisesse um abraço tanto quanto eu, sentir-se igualmente segura, tirar a roupa e o sorriso torto, deixar saudade no olhar de besta-fera que desarvora certezas, abrir a porta da cavidade escura e solitária que nos achávamos agora".