Pode-se imaginar Mário de Andrade desembarcando na Estação da Luz, em fevereiro de 1929, na volta de sua viagem ao Nordeste do Brasil. Vem com ele, plasmado em sua criação, o artista que mais o impressionara em seu trabalho de estudioso da cultura popular – o cantador de cocos Chico Antônio. Dirige às luzes da agitada e cosmopolita São Paulo um olhar de espanto que já é do personagem nascente no seu espírito. No universo ficcional, migrante como tantos da mesma região, Chico Antônio passa pela capital, antes de seguir para uma fazenda de café, cultivo que muita riqueza garantira aos paulistas.Surge um novo texto, o romance Café, cujo plano indica cinco partes – Prelúdio, Família, O par, Pobres ensimesmados e Final, em uma primeira nomeação. Em todas elas estaria o personagem Chico Antônio. O trabalho avança e, em 1930, dois fragmentos são divulgados na imprensa, Os sírios e A negrada. "Café (romance)" torna-se título nas listas das obras em preparo nos livros que Mário de Andrade publica – Remate de males (1930), Belazarte (1934), Macunaíma (1937, 2ª edição). Os fragmentos e o título Café instigam os leitores, na expectativa de uma obra-prima, pelo que nos conta a correspondência de Mário de Andrade. Mas a extensão do projeto esbarra no excesso de afazeres do polígrafo, e três das cinco partes previstas não estão prontas quando o romancista morre aos 51 anos, em 1945. As partes primeiras, Prelúdio e Família, no correr das versões, tiveram sua designação alterada pelo escritor para A noite de sábado e As duas irmãs. No texto, a crise da exploração do café, no final dos anos de 1920, recebe tratamento áspero, desvelando as contradições da sociedade brasileira. Passados 70 anos da morte de Mário, este Café oferecido ao leitor guarda o sentido de um romance inacabado que, todavia, não o desampara nos dias de hoje.