Ainda fresco no caixão, Machado de Assis põe-se a escrever o relato de sua vida, partindo do enterro que acaba de concluir-se e chegando até o seu próprio nascimento. A partir dessa perspectiva comum à das Memórias póstumas de Brás Cubas, Milton Coutinho constrói um romance insólito, narrado de trás pra frente, dando voz a um Bruxo do Cosme Velho ficcional, que compartilha com o nosso maior autor não apenas os dados anagráficos e a obra, mas também supostos medos, crueldades e segredos inconfessáveis.
Na trajetória do personagem Machado de Assis, o leitor percorrerá o período de vida do escritor (1908-1839, para ater-nos à cronologia invertida adotada no romance), a gênese de sua obra, a história de seus amores e de sua enfermidade. Etapa marcante dessa viagem literária são as páginas dedicadas à relação de Machado com José de Alencar e com a esposa deste, Georgiana da Gama Cochrane. Os rumores que apontam Georgiana como amante de Machado ganham aqui as tintas de uma trama romanesca tragicômica, que dialoga com as três principais obras machadianas – Memórias póstumas, Quincas Borba e Dom Casmurro.
Com este segundo volume de sua Trilogia Brasileira, Coutinho dá seguimento a um amplo afresco histórico e literário do Brasil em seus dois séculos de existência como nação independente, iniciado no romance anterior – No domínio de Suã. Desta vez, o foco se desloca para o século XIX, transfigurando em ficção fatos e personagens marcantes do Segundo Reinado e das duas primeiras décadas da República. "Romance de deformação" por excelência, esta Autobiografia póstuma de Machado de Assis não se limita a desconstruir a figura do escritor e a sua obra. Vai muito além, descosturando os fios que tecem o próprio romance contemporâneo e entregando ao leitor um labirinto de páginas permeadas de jogos e referências literárias, onde os fatos se perdem e terminam por confundir-se inextricavelmente com a ficção. E, no final das contas, a ficção talvez revele a realidade secreta dos fatos.