A grande transformação, de Karl Polanyi, é, reconhecidamente, um marco nas ciências sociais do século XX. Combinando economia, história, antropologia e sociologia, descreve a formação (no século XVIII), o desenvolvimento (no século XIX) e o colapso (na primeira metade do século XX) de um projeto de civilização construído em torno de quatro pilares: o mercado autorregulado, o padrão-ouro, o Estado liberal e o balanço de poder entre as potências do continente europeu.
A produção e a distribuição de bens materiais sempre existiram enraizadas em relações de natureza não econômica. Com a “grande transformação”, os elementos mercantis, que existiam há milênios, foram articulados em um domínio independente, “desenraizado” das demais instituições sociais, e tragaram para dentro de si a força de trabalho e a terra — ou seja, o homem e a natureza —, fato inédito na história. Tudo virou mercadoria. A sociedade e seu ambiente tornaram-se acessórios do mercado, agora um mecanismo autônomo. “Em vez de a economia estar enraizada nas relações sociais, as relações sociais passaram a se enraizar no sistema econômico.”
Tal sociedade radicalmente nova não resultou de um processo harmonioso, mas de uma pesada intervenção de poderes privados e estatais, que cobrou alto custo. Desfeitos os laços de comunidade, o que mantém a atividade econômica em funcionamento é o medo da fome, entre os que se apresentam para trabalhar, e a atração pelo lucro monetário, entre os que comandam o trabalho.
Polanyi defende que a força de trabalho, a terra e o dinheiro são mercadorias fictícias: “A suposta mercadoria chamada ‘força de trabalho’ não pode ser jogada de um lado para outro, usada indiscriminadamente ou mesmo largada sem uso, sem que isso afete também o indivíduo humano que é o portador dessa mercadoria peculiar. [...] A natureza ficaria reduzida a seus elementos, seriam degradadas as vizinhanças e as paisagens, poluídos os rios, arriscada a segurança, destruída a capacidade de produzir alimentos e matérias-primas. Por fim, a administração do poder aquisitivo pelo mercado liquidaria periodicamente as empresas, pois a alternância de escassez e de excesso de dinheiro se revelaria tão desastrosa para os negócios quanto eram as inundações e as secas na sociedade primitiva.”
A organização da vida em torno de um mercado autorregulado é um projeto irrealizável, pois implica aniquilar a substância humana e natural da sociedade. As tentativas de impor limites e restrições a esse “moinho satânico” não são uma conspiração de interesses particulares, mas uma autodefesa – legítima, necessária e até mesmo inevitável – das sociedades.
Ainda predomina o conceito da economia como um sistema de mercados integrados. Mas a implantação plena do mercado autorregulado nunca se completa, pois a vida social não pode ser reduzida a operações de compra e venda. Estabelece-se uma fuga para frente, com os defensores desse projeto afirmando que é preciso insistir mais e dobrar a aposta. A incapacidade de realizar-se é, ao mesmo tempo, uma fraqueza do modelo liberal, no plano da realidade, e uma fonte do seu vigor, no plano da ideologia. Boa parte da disputa política nas sociedades contemporâneas gira em torno desta tensão entre a distopia mercantil e a realidade social.
César Benjamin
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