Há neste livro uma parte significativa da ampla poética de Clarice Lispector.
Conforme afirma quem conduz a narração no primeiro dos admiráveis e extasiantes contos aqui dispostos por orgânica sabedoria – "as palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito".
Dessa prova de poder e de relativa independência da língua, extrai-se a própria substância de uma arte verbal capaz de articular diferentes tipos de registros, que obedecem à variedade e mutação dos estados de espírito, bem como à variedade e mutação das experiências (observadas ou imaginadas, sempre intensamente vividas).
Precaver-se ante a palavra e a ela entregar-se, eis o modo possível e laborioso de escrita – ajustar língua, conhecimento, percepção e disponibilidade. Infiltrar, assim, no espaço do habitual, orações complexas, desdobráveis, provocadoras de grandes distúrbios de rumos e de expectativas, ao lado de frases retas, curtas, certeiras e velozes. Feitas, por vezes, de um fervor só encontrável nos grandes textos místicos. Todo um mundo de segredos e de revelações. Aqui está a vida – pela palavra – sendo gerada aos nossos olhos, com seus contrastes de forças, seu regredir e avançar, a conquista da soberania e da humildade. Com o esforço e a destreza exigidos, surpreende-se o que se processa com inteligência arqueológica até surgir como se nascesse do puramente espontâneo, acompanhando, portanto, os inúmeros cálculos necessários para que se construa a longa e quase atemporal história dos corpos. Esculpe-se, nas sentenças, a alma.
— ROBERTO CORRÊA DOS SANTOS, Professor de Teoria da Literatura e de Semiologia do curso de graduação e de pós-graduação em Letras da UFRJ