Certa manhã, o guitarrista e compositor João Ortácio despertou de sonhos intranquilos, deixou a guitarra no estojo, abriu o guarda-chuva dentro de si e pôs-se a andar até as margens do fim do dia, às vezes como um cão sozinho, passo manco, sofrido, vagando sem caminho, às vezes como lume em palha seca, que sabe por onde ir e não quer voltar. Nascido na aurora da frágil democracia brasileira, ele aprendeu a gastar o coração na amada e odiada cidade da sua infância, Rosário do Sul-RS, mas isso não serviu para lançá-lo na felicidade do Instagram, indiferente aos novos bafejos ditatoriais, à maldade e à irracionalidade do Brasil de 2020. Pelo contrário, anunciando que a arma não assusta o poema, foi deixando seus versos em lixeiras queimadas. Cacoete de músico, pisou fundo no loop de palavras: raios, sapatênis, gente, gritos, tempestades. Palavras-ferrão. Com elas, atento ao tic-tac torto do corpo que cai, avançou em direção a tudo, sabendo que tudo é muita coisa.
Vitor Ramil