“Ione Mattos é uma escritora completa: sabe dizer e tem o que dizer. Isso dá aos seus leitores o prazer de mergulhar nos seus contos sabendo que poderão usufruir de sua escrita rica e precisa e ao mesmo tempo aprender: sobre a vida, a morte, a repressão dos costumes, a liberdade do espírito.E sobre o corpo. Ione é uma dessas raras escritoras que consegue inserir o corpo, com seus desejos, suas materialidades perturbadoras, sua intimidade pessoal e recôndita, no reino abstrato das palavras. Consideremos ‘Asco’, onde Ione leva além, de maneira brilhante, as palavras da canção de Caetano: ‘cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’. E mais não digo para não privar os leitores da vertiginosa e certeira virada final do conto.O corpo é amigo e inimigo. Seus contrapontos, a mente e o espírito, estão (na vida e nos contos de Ione) sempre indagando, sempre querendo ampliar e expandir seus limites. Daí a menina curiosa, sensual e rebelde de ‘Vovó usava barba’. A voz da menina permite a Ione falar do desejo de liberdade. E a avó dá o mote. Para a superação alegre, bizarra e despudorada do que é correto, de bom-tom.A avó do ‘Vovó usava barba’ é do time da enfermeira de ‘Asco’. É através de sua luminosidade contestatória e ao mesmo tempo doce que se chegará ao desvendamento e libertação do que parecia irremediavelmente atávico.Se chegará à liberdade, gradualmente conquistada (mas antevista) pela menina que, em ‘Resposta certa’, admira a religiosa transgressora e sem medo que a vida lhe coloca brevemente no caminho, cuja imagem ela perseguirá, intuindo encontrar ali uma chave. Para o mundo adulto, para si mesma.A infância, época formadora, cheia de procura e malaise, fornece a Ione um distanciamento extremamente interessante para que ela possa avançar suas indagações. Mais uma vez, o destaque recai sobre o que aflora, a pulsão, a verdade incômoda, o que irrompe através da pele, do silêncio. Do acobertamento. E não é o papel da escritora dar voz, revelar?O que as personagens da enfermeira vital, da avó barbuda e da madre libertária têm em comum é alegria, ternura, transbordamento, corpo. O mundo tenta tolher, com sua mesmice, limitações, preconceitos. Mas a menina e a escritora vão, com paciência e obstinação, desatando os nós, desfazendo amarras. E nos incluindo nesse percurso.”— Ana Teresa Jardim, escritora, autora de Tanto tempo sem te ver, A mesa branca, No fio da noite e Sacopenapan, livro infantojuvenil.