A versão de Charles Dickens para o Evangelho de Lucas não foi escrita para os olhos do público. Misto de narrativa simplificada e livro de moral, A Vida de Nosso Senhor surgiu à época em que o grande autor inglês trabalhava em sua grande obra, David Copperfield. Mas o livreto nasceu com o propósito de ensinar aos seus filhos pequenos qual era a sua visão da fé que lhe movia – o Cristianismo. Era a leitura que Dickens fazia no ambiente familiar nas noites de Natal.
Para o leitor contemporâneo, contudo, o livro ganha renovado interesse. Ele apresenta as ideias religiosas de Dickens antevistas em diversos momentos de sua obra literária, permitindo-nos adentrar um pouco mais em seu universo simbólico. Seu Cristianismo, profundamente protestante, com forte influência de obras como O Peregrino, de John Bunyan, é uma religião igualitária, que tem na missão social sua grande razão de ser. O Cristo de Dickens, além de condensar em si diversas faces – professor, médico, líder e modelo ético –, prega a caridade como a grande virtude e serve de modelo moral aos seus fiéis.
Como bem disse Orwell, a literatura de Dickens tem um inegável caráter didático – cada um de seus romances busca mostrar ao leitor a necessidade de que estendamos o olhar para o próximo e não ignoremos as pequenas tragédias humanas ao nosso redor. Mas o melhor deste A Vida de Nosso Senhor é perceber que, mesmo em meio à conhecida história, quase sempre fiel ao texto bíblico, o humor e a ironia característicos da escrita de Dickens afloram e tornam o texto divertido e familiar. Alguns leitores poderão se surpreender com a curiosa sensação de estarem sentados junto às crianças de Dickens, ouvindo sua fluida narrativa.
O autor proibira expressamente que A Vida de Nosso Senhor fosse publicado. Por sorte, seus herdeiros desconsideraram tal decisão no ano de 1934, quando a primeira edição foi feita após o falecimento do último filho de Dickens. E agora temos em mãos uma pequena pérola, um tesouro familiar que lança mais luzes sobre o pensamento de um dos maiores romancistas de todos os tempos.
Robertson Frizero é escritor, tradutor, dramaturgo e professor de Criação Literária.